segunda-feira, maio 30

Agatha - Simplicidade

   Perdi a vontade de terminar meu drink no meio daquela multidão afogada em alegria, música e alcool. Minha cabeça começava a doer com aquelas luzes coloridas e com aqueles flashes. Atravessei aquele mar de gente, me despedi da Paula, do Ricardo e de mais algumas cabeças que estiveram comigo desde o começo daquela loucura que terminou quando eu voltei para o backstage e fui aplaudida por todos ali.
 Lucas me esperava do lado de fora da casa de festa, encostado naquele sedan preto com um par de chinelos e um capotraste no porta luvas, aquela camisa suada, do futebol no meio da chuva, jogada no chão do banco de trás, um boneco bobblehead do Spock acima do painel e um CD do Bob Dylan que nunca mais saiu do player. Sorrio ao pensar em todos esses detalhes irrelevantes para a maioria das pessoas, mas que para mim essa parte irrelevante da minha vida é uma das minhas preferidas.
- Você tá bem? - perguntou ele quando eu me aproximei. As vezes ele acertava quando deveria fazer a pergunta certa.
- Não... tô me sentindo estranha... a minha cabeça tá doendo e parece que eu acabei de fazer uma maratona porque meu coração tá disparado. - me sentia uma presa sendo caçada por algum animal invisível.
- É, deve ter sido o alcool, aquela ansiedade...e claro, o bonitão aqui. - Lucas não era convencido, mas brincava ser. Deu aquele sorriso de Johnny Bravo e pôs as mãos na minha cintura.
- Não, é mais sobre amanhã, eu não sei... é uma sensação diferente. uma espécie de medo...não sei explicar. Deve ser por causa do desfile, da aceitação, das críticas... e eu já tô acostumada com o bonitão aí... nem ligo mais pra isso... - fingi estar admirando minhas unhas e a boca dele se aproximou da minha orelha, antes de beijar meu pescoço.
- Deixa a gente chegar em casa. Aí eu quero ver você não ligar. 

quarta-feira, maio 25

O pássaro

Um pássaro desamparado
pousou na janela do meu quarto,
piando alto e cada vez mais alto,
despertando-me do mais profundo sono.
Ele parou de piar
quando a janela abriu e o vento e a chuva entraram,
livrando-me da areia e me ensinando a respirar

O pássaro pousou na minha escrivaninha e pôs-se a me olhar
Fitava aquele corpo sem jeito e deslocado aprendendo a se equilibrar
Senti seus olhos nos meus olhos ocos,
olhos de vidro orgânico que não sentia
o que dentro do peito pulsava e que não sabia,
se sabia enfim, se batia.

Então aquele pássaro deu um pio quase mudo.
Ele sorriu um sorriso cansado e aliviado.
Fechou seus olhos com um suspiro
E o sopro de vida que ele esculturou
O fez dormir silenciosamente
na pele de quem ele despertou.

quarta-feira, maio 18

Pode tentar me acompanhar?

   Entre uma palavra e outra, eu crio ligações ou quebro-as. Entre suas camadas, suas partículas seus neutrons, dá para ver meus pensamentos se formando em cada letra, em cada ponto, um amontoado de ideias, pensamentos, opiniões e contradições se ligam entre si na organizada bagunça que é minha mente que não mente quando digo tais palavras sem pausas mentais, diferente de como escrevo que tem sempre uma pausa, se não seria difícil entender tudo que penso, ou melhor, mais difícil de entender tudo que penso, falo e escrevo. Mas afinal de contas, não está tudo conectado? Sou o que falo, penso e escrevo, sou a mesma com ou sem pausa...Mas na verdade eu, eu mesma não tenho pausa, você não encontrará em mim um botão de liga/desligada pois a minha energia nunca acaba, porque eu penso em muita coisa ao mesmo tempo, sinto, falo e escrevo diferentes coisas e todas reais, todas interligadas e sem ligação alguma com pensamentos reciclados, refeitos, repensados, imutáveis. Sou um narrador desfocado, narrador oculto, narrador personagem, um mero figurante, um coadjuvante e o protagonista desse monólogo que vivo por entre essas linhas que penso cá comigo.

quarta-feira, maio 4

Incompreensão

  Vendas. É só isso que vejo pelas ruas. Vendas de todas as cores, tampando olhos sem cores. Cegos por ignorar o senso. Cegos pela ausência de luz. 
  São corpos sem almas, sem perspectivas, afogados no senso comum de sua cegueira social. Preferindo ter suas bocas costuradas por um medo que retarda seus pensamentos, que descarta seus princípios. São cegos e mudos que olham tudo e falam de todos enquanto caminham, acompanhando os arranha-céus da cidade, perdidos entre altas estantes de uma biblioteca ou trabalhando na terra.
  
Mas não é tudo que espreita este azul inerte. Há também rostos com olhos e bocas trocados, virados pelo avesso, neurônios turgenciados, corações vegetalizados e ossos incapazes de aceitar a simplicidade das coisas, tornando-as pútridas, indignas de existência. Eles andam entre os corpos apáticos, vestindo roupas ordinárias, com o nariz virado para o Sol, tão negro quanto a sombra que os segue.
  
Essas gárgulas não guardam a Notre Dame, são devoradoras da felicidade alheia. Com uma voracidade imoral estraçalham sua alma e seu corpo. Deixam marcas da vergonha em seus pensamentos através de suas presas e talham o medo em seus ossos através de suas unhas. Elas destroem a sonoridade de seus sinos por eles serem absolutamente iguais.

  Um beijo harmônico, cheio de desejos em companhia de uma febre alta e prazerosa vira uma lágrima fria e vermelha entre esses corpos perfeitamente iguais. Apenas por serem iguais.
  
Diga-me gárgulas, o quê tanto temem? Porque temem tanto?
 Não adianta apontar para o céu que nenhuma voz lhes dirá sua preciosa resposta. Não adianta apontar para aqueles corpos distantes porque nenhum deles saberá a resposta. Mas afinal, o que o não conseguem compreender? Se Atenas compreendia tão bem, porque não vós?   Desvirem esses rostos e coloquem a cabeça no seu devido lugar e deixem as crianças se amarem do jeito que elas são. Outros iguais, iguais e diferentes de nós também existem. Eles voam, nadam e possuem até quatro patas! Até quando vós continuareis a negar o que enxergais tão bem?
   
Não, criança, não chores mais. Tuas chances neste mundo um tanto sem sabor e incolor, são menores que os grãos de areia, mas ainda carregam grandes esperanças, histórias e risos pelo teu caminho. Não precisas enganar tua sombra e mudar tua silhueta. Não tem porque se envergonhar. Deixe a vergonha para os que preferem fingir não te ver.